quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Lula e a Esquerda

Depois da inesperada fragilidade revelada no primeiro turno, a vitória retumbante de Lula no segundo deixou o mundo estupefacto. É um acontecimento político notável, e o mérito cabe por inteiro a Lula. Só ele poderia reacender o entusiasmo da mobilização em milhares de militantes magoados e desiludidos pelos desacertos da sua política durante o primeiro mandato. Mas as razões do seu êxito são bem mais profundas e merecem reflexão. A vitória de Lula representa um "choque de realidade" para as elites políticas que governaram o Brasil até 2002. A distância e a arrogância que as separa do país real e a acumulação histórica de ressentimento que isso criou entre as classes populares não lhes permitiu aproveitar as fragilidades do candidato Lula. 58 milhões de brasileiros, na sua maioria pobres, preferiram correr o risco de votar num governo que os pode desiludir a votar num governo que, à partida, já não os consegue iludir. É inescapável a perplexidade causada por duas enormes dissonâncias cognitivas reveladas nestas eleições. A primeira consiste na discrepância entre a dramática polarização política, sobretudo no segundo turno, e as diferenças moderadas entre as duas propostas políticas, sobretudo se tivermos em conta as políticas do primeiro mandato de Lula e se descontarmos a questão das privatizações. A segunda reside em que o candidato que conquistou o voto e o coração de milhões de pobres é o mesmo que recebeu efusivas e cúmplices felicitações de Bush, a quem só interessa o bem estar dos ricos e dos muito ricos. Esta foi a única eleição recente na América Latina em que o candidato de esquerda não sofreu a interferência da embaixada norte-americana. Significam estas dissonâncias que alguém está a enganar alguém? Não necessariamente. A razão para elas está no facto de a distância que separa as elites oligárquicas das classes populares não ser apenas económica, apesar de esta ser enorme num dos países mais injustos do mundo. É também cultural e racial. Isto explica o êxito da política simbólica de Lula, a sua capacidade para ampliar o impacto político de medidas relativamente tímidas, devolvendo a auto-estima a milhões de brasileiros humilhados não apenas pela fome, mas também pelas barreiras no acesso à educação e pelo racismo insidioso da suposta democracia racial. Graças a tal capacidade, medidas não originariamente de esquerda, como a bolsa-família, puderam ser constitutivas de cidadania social, e pequenas transferências de rendimento puderam ser transformadas em mudanças qualitativas. Tudo isto foi possível devido a uma subtil inversão do sinal político: atribuída por Lula, a bolsa-família foi credivelmente entendida pelos brasileiros como "isto é o mínimo que vos devo"; se fosse atribuída por um presidente de direita, dissesse ele o que dissesse, seria sempre entendida como "isto é o máximo que vos devo". Esta inversão escapou aos analistas políticos.O segundo mandato de Lula terá de ser diferente do primeiro. Com a sua lucidez habitual, Tarso Genro formulou o óbvio, o que, em política, é quase sempre tabu: a era Palloci acabou. Só que acabou há já tempo, pelo menos desde que, no final de Agosto, o Conselho de Desenvolvimento Económico e Social aprovou por unanimidade os "Enunciados da Concertação". Entre esses enunciados, está a baixa da taxa de juros para níveis médios internacionais nos próximos cinco anos e a duplicação da parcela da renda nacional apropriada pelos 20% mais pobres nos próximos quinze. A partir de 1 de Janeiro, Lula terá de começar a preparar o pós-lulismo: uma forma de governação de esquerda que não dependa da capacidade de um líder carismático para disfarçar com o discurso da anti-política a incapacidade para substituir a velha política por uma nova política. Essa nova política tem de ser preparada de um modo consistente, e o primeiro passo é certamente a reforma do sistema político e a reforma do Estado. Só elas permitirão concretizar as políticas de justiça social, cultural e racial em que os brasileiros depositaram a sua esperança. Mas tudo isto só acontecerá se os brasileiros não se limitarem a esperar. E tudo leva a crer que assim sucederá. A plataforma política dos movimentos sociais—"Treze Pontos para um Projecto Popular para o Brasil"— apresentada a Lula a 19 de Outubro é um sinal de que o tempo dos cheques em branco acabou e de que a luta contra a cultura política autoritária terá de ser travada com decisão para impedir que o golpismo ocorra, mesmo que a coberto da lei (um exemplo grotesco desta possibilidade é a vergonhosa sentença judicial contra o grande intelectual e democrata Emir Sader). Algures, entre os enunciados de concertação e os treze pontos, a governação do segundo mandato será uma nova era.
Boaventura Sousa Santos (Publicado na Folha de São Paulo em 6 de Novembro de 2006)

1 comentário:

Anónimo disse...

Aqui está o exemplo de um tipo que escreve muito e diz pouco......não acrescenta muito ao que todos pensamos sobre a questão do Brasil e das suas eleições......mas pronto é sociólogo... logo a opinião dele para ti deve até ser interessante....